ATTENAS AULAS

quarta-feira, 20 de novembro de 2013

A ÁFRICA MORA EM MIM! MITXCHELLL

Por que para o negro não?
José Vicente fala sobre o atraso das universidades paulistas ao resistir às cotas e a falta de representatividade racial no País
Por Lívia Perozim — publicado na edição 67, de junho de 2013
Quinta-feira, 19 horas. É o primeiro dia da semana que o reitor da Faculdade Zumbi dos Palmares, José Vicente, vai à instituição com sede no Clube de Regatas Tietê, na marginal de mesmo nome, bairro Armênia. Na fase de conclusão de sua tese de doutorado, o tempo está curto. Atende dois funcionários em sua sala, posa para esta fotografia e sai para o pátio principal para homenagear uma turma de 24 alunos selecionados para estagiar no Bradesco, uma das instituições privadas que ajudam a manter a única faculdade com maioria negra do País. Lá, cada conquista dos 1,8 mil alunos (90% deles são negros declarados) é comemorada. O poder do incentivo José Vicente aprendeu com a vida.  Caçula entre os seis filhos, perdeu o pai com 1 ano de idade. Ainda criança, foi trabalhar na roça com a mãe. Eram boias-frias em Marília, interior de São Paulo. A ajuda de uma vizinha que trabalhava numa escola e a dedicação aos estudos fez dele soldado, advogado e, mais tarde, sociólogo. Nos anos 90, Vicente encabeçou um grupo de pessoas que conseguiam bolsas de estudo para negros em universidades particulares e fundou a Afrobras, ONG que administra a Zumbi dos Palmares. Nesta entrevista, talvez a antepenúltima tarefa da noite da referida quinta-feira, José Vicente explica por que os negros precisam de cotas e outras medidas que diminuam o abismo que os separa de brancos.

CartaCapital: Recentemente, o Supremo Tribunal Federal validou a constitucionalidade das cotas raciais na Universidade de Brasília. O que a decisão representa? 
José Vicente: Essa decisão coloca por terra um falso dilema. Em síntese, a discussão até agora era de que a ciência, a genética, afirmava não haver raça e, por não haver raça, não havia racismo ou desigualdade em razão do racismo. Então, não precisávamos nos preocupar com medidas pontuais. Bastariam as medidas universais e o problema estaria resolvido. Quando comparamos essa ciência, a genética, com a outra ciência, que é a estatística, percebemos uma distorção.  A despeito de não haver raça do ponto de vista biológico, temos um desequilíbrio por causa de um passivo histórico que se reproduz e se concretiza no presente, mantendo o gap entre brancos e negros. Quando o STF assume que estávamos equivocados e que há sim uma distorção em decorrência de tratamentos distintos em razão da cor da pele, do fator racial, o tema finalmente é colocado no seu lugar de racionalidade. Ao mesmo tempo, são legitimadas ações feitas há uma década, como é o caso das cotas raciais da Uerj e da UnB. Nessa perspectiva, essa decisão talvez seja a primeira, em dimensão de importância do Supremo, que tira um discurso falso e coloca um verdadeiro. 

CE: Mesmo diante da decisão do STF, a USP, a Unesp e a Unicamp, as maiores universidades públicas de São Paulo, afirmaram que não vão adotar o sistema de cotas raciais. Os jornais Estado de S.Paulo e Folha de S.Paulo escreveram editoriais contrários às cotas raciais. Por que o estado considerado a “locomotiva do País” se nega a aceitar as cotas?
JV: É uma contradição. O discurso desses setores e de seus representantes, que são esses veículos citados por você, é o da modernidade e da efetividade dos diretos do cidadão. Mas, no momento em que o mundo todo combate o racismo e produz políticas para atender minorias e combater desequilíbrios sociais, o maior e mais poderoso estado da Federação e os seus ambientes de produção de conhecimento e de produção econômica se recusam a se debruçar sobre esse tema e apresentar uma solução, diferentemente do resto de todo o País. É também contradição porque lá no fundo, a bem da verdade, as medidas que hoje estão sendo cristalizadas começaram com parte da representação política de São Paulo. Foi o PSDB, por exemplo, a social-democracia, que definiu e impôs medidas afirmativas de inclusão de negros nos mais variados espaços do País. Foi no governo de Mário Covas que se criaram os conselhos da comunidade negra. As primeiras cotas, principalmente no serviço público, foram criadas no governo de FHC, o Programa de Ação Afirmativa é dele, é de Covas. Depois que a social-democracia define que isso é prioridade, é ela própria que diz, por meio das instituições que comanda há tantos anos, “tem razão, mas vai preso”. É incompreensível. E o pior e mais grave: é papel da Universidade discutir e produzir conhecimento sobre um fenômeno que produza qualquer tipo de desigualdade ou trave o desenvolvimento do progresso e da sociedade. Se as universidades públicas, custeadas com o recurso dos negros paulistas e paulistanos, se recusam a aprimorar, criar políticas e tecnologias, a questão que se coloca é: por que para os negros não? Todos usufruem do espaço do ensino público. A USP, a Unesp e a Unicamp recebem negros dos convênios dos países africanos sem vestibular, por exemplo. Na cidade e no estado de São Paulo existem 37% de negros autodeclarados. Nem no governo estadual nem no municipal temos negro no primeiro, segundo, terceiro e quarto escalões. Dos 6 mil professores da USP, meia dúzia é de negros. Do corpo docente todo, não tem mais que 6%.

CE: São Paulo finge viver uma democracia racial?
JV: O fato é que isso não é uma limitação de São Paulo. É uma limitação de todas as universidades públicas. Apenas 1% dos professores universitários de todo o País é de negros, 1% dos pesquisadores e 1% dos profissionais que trabalham em cargos de maior status nas universidades são negros autodeclarados. Se compararmos com a África do Sul e com os EUA no tempo do apartheid, ficamos corados de vergonha, porque esses países tinham mais negros nesses espaços do que nós temos hoje na democracia brasileira. 

CE: O senhor vê novas perspectivas para o negro no governo Dilma?
JV: A presidenta Dilma, da mesma maneira que os demais governantes, ainda não tratou com toda a ênfase, intensidade e mesmo com toda a atualidade esse tema. Nós tínhamos no governo Lula, em alguns momentos, quatro ministros negros: Gilberto Gil, Benedita da Silva, Matilde Ribeiro e Orlando Silva. Agora, no governo Dilma, não temos nenhum negro no primeiro escalão. No ministério, nos bancos públicos, nas universidades públicas, nos postos de prestígio não há negros. Imagine que quando o Obama esteve no Brasil, o país mais negro da América, não havia um negro no almoço de recepção. Continuamos nos comportando como se as coisas estivessem todas no lugar quando, na verdade, sempre estiveram e continuam fora do lugar. Antes se dizia que a discriminação não era racial, era social, e com o milagre brasileiro tudo se resolveria. Hoje chegamos à condição de sexta potência mundial, e o gap  é o mesmo de quando estávamos entre as septuagésimas economias do mundo.

CE: Nosso passivo histórico com o negro é comparado ao passivo atual que temos com o aluno de escola pública, sujeito a uma educação de má qualidade. Ao defender que as cotas deveriam ser apenas para alunos de escolas públicas, estamos comparando passivos da mesma ordem?
JV: Nosso passivo com o negro é anterior à Abolição e se manifesta depois da escravidão. O que acontecia antes da escravidão, que era a exclusão total, se repetiu, se ampliou e chegou a um estágio simplesmente insuperável de exclusão do negro na sociedade brasileira. O que acontece, sim, é uma exclusão social e não racial, mas todos os números comprovam o contrário. Quem defende a cota sem critério de cor usa isso como uma ideologia para defender interesses de grupos que, encastelados na oportunidade, não têm sequer a capacidade de fazer uma concessão. Quando as universidades públicas de São Paulo se negam a disponibilizar cotas, elas estão dizendo “cadê o meu queijo que estava aqui?”, “Ah, ele está aqui e ninguém tasca”. Isso é uma postura equivocada, que já estava equivocada no passado e que hoje não tem mais lugar. 

CE: Adotar cotas por si só é suficiente? As universidades estão preparadas para romper com o status quo? 
JV: É assim que eu respondo à pergunta que você fez primeiramente. Quais são os significados da decisão do Supremo? O primeiro é justamente esse. Arrancar um discurso ultrapassado, retirar e limpar os obstáculos postos, que impediam a abertura de uma trilha e, a partir dessa trilha, enxergar a luz no final do túnel. Isso o STF fez. Agora, caminhar daqui até a luz vai precisar ser novamente uma priorização da sociedade, uma estratégia global e do governo, e uma conquista dia a dia para fazer com que essa possibilidade vire realidade. Seguramente, as cotas não têm a capacidade milagrosa de se resolver todos os males do negro brasileiro nem a capacidade mística de fazer com que todos os problemas do País do passado desapareçam do presente e não se coloquem no futuro. O problema é que dentro dos palácios em que se discutem as direções da nação não existem negros. 

CE: O ministro Joaquim Barbosa, por exemplo, no Supremo, é representativo?
JV: É só um símbolo. E um símbolo não vai conseguir produzir uma ação, por um motivo muito simples: ele é 1 de 11. No Supremo Tribunal de Justiça, temos 1 em 33, no estado de São Paulo, somos 1 para 400. A capacidade individual dessas pessoas, numa perspectiva de decisão em cima de uma agenda do negro, é quase nenhuma. 

CE: Vai chegar um momento de discutir cotas para professores negros nas universidades?
JV: Não dá para ser meio democrata ou meio republicano ou meio igualitário. Ou seremos gente grande ou vamos continuar nos escondendo atrás de uma falsa discussão e atrás de uma -realidade aparente de igualdade.  

CE: Podemos falar hoje de uma classe média ou uma classe empresarial negra?
JV: Lógico que não. Se não temos nos 400 desembargadores do maior tribunal de Justiça da América do Sul sequer um negro, que classe média é essa? Se dos 33 ministros, temos apenas uma mulher negra em uma secretaria de segundo escalão? Se de todas as universidades do País, o único reitor negro é este que vos fala? Não é questão de pensar em cotas para negros no corpo docente. O problema são essas instituições caírem no divã e pensarem que têm algo muito errado naquilo que elas praticam e pregam. O quadro delas de alunos, de professores e funcionários não é o Brasil e não reflete a mistura de raças que advogam como sendo o centro da brasilidade e da identidade tripartida entre negros, índios e brancos. Não advogo pelas cotas de professores, mas não tenho dúvidas de que precisamos das mais variadas medidas que impeçam essa exclusão do negro no ambiente acadêmico.

CE: O País precisa de outras faculdades como a que o senhor dirige?
JV: Eu preferiria que o País praticasse esses fundamentos e que amanhã eu fechasse a Zumbi dos Palmares enquanto uma simbologia dessa natureza. Mas  tenho muitas dúvidas se o Brasil terá capacidade para fazer uma mudança de rumo tão profunda. E digo isso pensando em temas tão importantes para os brasileiros como a educação, a saúde e a infraestrutura urbana.

CE: A Zumbi dos Palmares está sozinha nessa mudança de mentalidade?
JV: O fardo que acabou sobrando para a gente é muito pesado. Primeiro, porque temos a responsabilidade de dar certo de toda maneira e de sermos os portadores dessa nova fisionomia e produtores da mudança. Como você está vendo, sou só uma pessoa limitada, como todas as outras. De modo que absorver uma responsabilidade dessa natureza perante todo o estado e o País é uma coisa que nos amedronta e estarrece. Por outro lado, a gente procura responder de forma ativa ao tempo e ao compromisso que deveria ser de todo cidadão. Tenho uma realidade que me atormenta e constrange e preciso tentar modificá-la. É o nosso foco e compromisso. A gente tem uma força interior e exterior que nos encaminha e acalenta nessa direção. Não há bem mais valioso do que poder olhar nos olhos dessas pessoas e ser um ponto de comunicação importante deles com o resto do universo. Neste momento, não sentimos cansaço, pelo contrário, sentimo-nos como ungidos, agraciados. O criador nos colocou diante de uma missão para fazer as pessoas acreditarem que é possível enfrentar esse desafio. 

CE: A universidade conta com o apoio institucional de empresas? Como está sendo mantida?
JV: Ela continua sendo um sacerdócio. Esses jovens pagam em média 300 reais por um curso que no mercado custa 700. E para um curso que seja na Zumbi ou no Mackenzie, a estrutura é a mesma. Ou seja, você precisa de professores, infraestrutura. Algumas empresas colaboram, contribuem. Muito menos do que a gente precisa. Mas, agradecidamente, com aquilo que nos auxilia. De modo que não temos do que reclamar. O fato é que ficamos reféns de um grupo muito pequeno de colaboradores que o fazem, no mais das vezes, por ter uma interação pessoal e íntima com os trabalhos. O compromisso dessas empresas tem ajudado bastante. O Bradesco é um parceiro relevante, a Mercedes, a Ford, mas o fato é que fazer a revolução, ou fazer a transformação, custa. E, como diria Milton Freire, não existe almoço grátis. Nós não temos representação no BNDES, no Banco do Brasil. Aliás, nunca tivemos um tostão das instituições públicas. 


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